Descrição
A indumentária como parte do processo de formação das primeiras civilizações antigas, com olhar centrado nas regiões geopoliticamente reconhecidas como o Oriente.
PROPÓSITO
Compreender como surgiram as noções de vestuário, como foram elaborados as primeiras vestimentas e os adornos, e como a indumentária é uma importante fonte documental para entendermos a evolução biossocial da humanidade. Analisar o desenvolvimento epistemológico humano na materialização das culturas urbanas, nas quais as vestimentas desempenham papéis funcionais e simbólicos, destacando-se as culturas antigas da África e Ásia.
OBJETIVOS
Módulo 1
Reconhecer o surgimento e a evolução do vestuário nas sociedades humanas
Módulo 2
Identificar as principais questões que permeiam a formação da indumentária no Crescente Fértil
Módulo 3
Descrever o papel da indumentária nas primeiras civilizações sedentárias da antiguidade no Oriente
Introdução
A história da indumentária é uma importante fonte de conhecimento sobre o passado, um repositório fundamental de informações para a compreensão das origens da humanidade, que nos permite vislumbrar seus mecanismos de adaptação, as soluções encontradas para enfrentar os desafios da natureza, e o surgimento das codificações simbólicas que ajudaram a construir nosso imaginário.
O estudo da história das roupas e dos adornos, bem como de suas técnicas de fabricação, proporciona revelações do processo de construção dos saberes humanos e de suas formas de adaptação.
É surpreendente saber, por exemplo, que os adornos podem ter surgido antes mesmo das roupas; e que o desenvolvimento dos tecidos vegetais acompanhou o das técnicas na agricultura, quando se tornou possível conhecer e implementar o uso das plantas em várias aplicações da vida cotidiana.
A história da indumentária envolve uma teia de relações interdisciplinares, como História das ciências, técnicas, símbolos, Arte, Arqueologia, Paleontologia, Antropologia etc. É necessário estabelecer processos comparativos entre civilizações para obtermos algumas ideias sobre tendências e sistemas adaptativos. O estudo das primeiras fases da trajetória humana envolve a construção de uma série de modelos e hipóteses que dependem de muitas variáveis, como evidências materiais, imagéticas e literárias (quando possíveis).
Atenção
O desenvolvimento das sociedades agrárias afro-asiáticas constitui uma ponte crucial, para o entendimento do chamado “período primitivo” da humanidade (o Neolítico) e o surgimento de sociedades sedentárias, agrárias e urbanizadas. Todavia, seu estudo no Brasil segue restrito no que diz respeito à história da indumentária das culturas orientais e africanas que ainda sofrem com o desconhecimento e a falta de materiais disponíveis. Nos livros sobre História da moda e do vestuário lançados, no Brasil, ainda predomina uma apresentação eurocêntrica, que prioriza a história da indumentária no Ocidente como dominante (SANTUCCI, 2019; 2020).
Esse desconhecimento das diversas formas de arte antigas resulta, muitas vezes, que as civilizações do passado são imaginadas desprovidas de cor ou de sentido dimensional –como se elas desconhecessem questões figurativas.
Um caso clássico dessa situação é a ideia do “passado acromático” – ou seja, de que os povos antigos não usavam cores em suas roupas e seus monumentos. Desconhecendo que os pigmentos naturais e minerais usados na coloração se desgastaram com o tempo, muitas pessoas acham, ingenuamente, que todas as construções tinham a cor das rochas e que as roupas eram majoritariamente brancas. Isso pode ser visto claramente nas produções cinematográficas hollywoodianas, nas quais os tecidos de cor branca predominam.
Thalla (Delos)
Essa estátua grega do segundo século AEC, atualmente no Museu de Frankfurt, é um exemplo excelente da ideia “acrômica” que se criou ao longo dos anos. Os pigmentos da tinta se foram com o tempo, mas deixaram traços que permitem reconstituir suas cores originais, mostradas na versão à esquerda.
A ideia é proporcionar um quadro mais abrangente e informativo sobre a questão da indumentária do Egito à China, passando por regiões e épocas diferentes, que compõe um cenário rico e diverso. E analisar os pontos em comum e as distinções que podem ser estabelecidas entre elas, desvelando como o desenvolvimento humano seguiu rumos criativos e inovadores.
MÓDULO 1
Reconhecer o surgimento e a evolução do vestuário nas sociedades humanas
Pré-História
Vamos conhecer o significado de indumentária e a sua importância para a evolução da humanidade com o professor André da Silva Bueno!
O termo “Pré-História” era usado para definir o período “sem escrita” das civilizações humanas. A história só passaria a existir quando as culturas começaram a escrevê-las. Isso criava dois problemas sérios:
Problema 1
Antes da escrita, os povos “não teriam história”.
Problema 2
As sociedades que demoraram a produzir sistemas de escrita (ou pior, cuja escrita foi destruída com o tempo por invasões estrangeiras) seriam “primitivas”, sem narrativas sobre si mesmas.
Essa concepção criou uma conotação pejorativa para sociedades ágrafas, submetendo-as à posição subalterna na história da humanidade. Esse tipo de leitura fez parte de uma agenda cultural imposta pelo imperialismo europeu sobre as várias civilizações da África, Ásia e Oceania que foram dominadas ao longo desse período.
O desenvolvimento de áreas como a Antropologia e da Arqueologia mostrou o equívoco da teoria:
- estudos de genética que apontam a origem da atual variante Homo sapiens na África;
- o Egito e os povos da Mesopotâmia que antecederam a aurora do mundo greco-romano;
- as investigações antropológicas nas regiões do Pacífico, conduzidas por Mallinowski ou Sahlins, que mostraram como algumas das culturas ali presentes eram, de fato, mais recentes na história humana, fornecendo pistas importantes sobre o seu passado de transumância (CLERK; NILE, 2009 e HARARI, 2018).
Apesar de não deixarem nada escrito, muitas dessas civilizações tinham uma cultura sofisticada, estruturada em torno de símbolos e códigos que respondiam perfeitamente às suas necessidades – muitas de suas descobertas tecnológicas vieram antes de qualquer sistema de escrita.
O grau de avanço tecnológico de uma sociedade não corresponde diretamente à sucessão hierárquica das culturas. Algumas sociedades, por exemplo, fizeram opções por se aclimatarem em determinados espaços geográficos, que as permitiram criar modelos sustentáveis de sobrevivência. Além disso, o desenvolvimento das técnicas passa por diversas apropriações – ou seja, uma sociedade vai absorvendo conhecimento das outras —, o que não nos permite afirmar que existe uma civilização definitivamente “mais avançada” do que outra. Afinal, o que seria do Ocidente sem a bússola, a pólvora, o papel, a imprensa e o leme de popa – todas elas invenções chinesas, ou os gregos sem a influência intelectual do Egito? (BERNAL, 1987 e TEMPLE, 2006)
Atenção
Afinal, o que chamamos de “Pré-História”?
O termo cumpre uma função de definir o período anterior ao surgimento das primeiras comunidades sedentárias. Assim, “Pré-História” seria a fase, na história humana, marcada pelo surgimento da espécie Sapiens no planeta, o desenvolvimento de seus mecanismos de adaptação e sobrevivência, a fabricação de instrumentos e utensílios e, por fim, o surgimento do pensamento simbólico e imaginativo.
espécie Sapiens
A espécie Sapiens teria surgido em um período ainda indefinido, que oscila entre um milhão a quinhentos mil anos atrás. Ela é marcada, entre outras coisas, pela aparição do córtex frontal na estrutura cerebral, área responsável pela reflexão, imaginação e associação interpretativa de ideias (MACLEAN, 1990). Entre todos os seres, o Sapiens era o único capaz de interpretar e conceitualizar as leis da natureza, podendo desenvolver meio artificiais de subsistência.
comunidades sedentárias
Das vilas agrícolas às cidades, o fenômeno da urbanização acompanha um processo de complexidade política e cultural, ligada à estruturação de redes de poder e de laços econômicos que suplantam os modelos de subsistência.
A espécie não estava sozinha nesse período chamado de “pré-histórico”. Várias espécies de hominídeos conviveram com o Sapiens durante um bom tempo, concorrendo por espaço e recursos naturais. Por isso, é difícil ainda determinar, com precisão, as datações para delimitar essas fases. Atualmente, emprega-se o seguinte modelo bifásico para nos guiar nessa etapa pré-urbanizada da história humana:
“Pedra antiga” ou “Pedra Lascada”
Remonta até dois milhões de anos atrás, quando consideramos a existência de outras espécies de hominídeos no planeta. Foi marcada pelo desenvolvimento de pedras cortadas, amoladas ou quebradas como os primeiros instrumentos de uso para auxiliar na força mecânica do corpo. Esse é um longo período de formação e adaptação, em que as espécies humanas começaram a desenvolver práticas de grupos, noções de culto e crença religiosa, e aperfeiçoaram, gradualmente, o uso do fogo e de materiais orgânicos como utensílios. Essa fase é crucial, pois surgem os primeiros indícios do uso de ornamentos e vestimentas entre os hominídeos. Os grupos paleolíticos eram nômades em geral, viviam da caça e da coleta, tinham conhecimentos rudimentares de agricultura, de escultura e de produção artesanal.
“Nova pedra”
Em torno de dez ou doze mil anos atrás, ocorreu aquilo que o arqueólogo Gordon Childe (1947; 1975) chamou de uma “revolução neolítica”. Os conhecimentos acumulados por quinhentos mil anos se transformaram rapidamente em um surto de desenvolvimento econômico e cultural.
Após observar os ciclos da natureza, as plantas e as espécies animais, os seres humanos começaram a investir na agricultura, na pecuária e na sedentarização do espaço, dominando os cursos de água. Eles aprenderam a compreender as estações do ano, e produziram utensílios, vestimentas e acessórios que os permitiram habitar meios anteriormente considerados como pouco viáveis.
Essa última fase foi uma complexificação marcante das sociedades humanas, ensejando a concentração de recursos, técnicas e sistemas, crenças nas cidades, que surgem a partir desse fenômeno; e com elas, se daria a formação de estruturas políticas e religiosas que dominariam o perfil cultural das civilizações.
Paleolítico: adereços e uso da pele dos animais
No longo período do paleolítico, quando nos deparamos com representações pictóricas, temos acesso a uma importante fonte de símbolos e transmissão de ideias sobre essa época. Veja alguns exemplos:
Gruta de Lascaux
França
Gruta de Altamira
Espanha
Pinturas rupestres da Serra da Capivara
Piauí, Brasil
Serra da Capivara
Um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo, o Parque Nacional da Serra da Capivara guarda importantes vestígios da passagem do ser humano paleolítico no Brasil. Note, na imagem, as representações humanas; elas nos servirão de base para começarmos a investigar melhor como nossos ancestrais se ornavam e vestiam.
Os achados arqueológicos do período podem ser também o lixo dessas sociedades e servem aos estudiosos como dados. É o caso dos sambaquis que com o tempo começaram a ganhar significado simbólico, e alguns foram utilizados para enterramentos. Existem muitos sambaquis no Brasil, que revelam traços da existência de culturas em fase paleolítica no nosso país.
sambaquis
Monturos construídos com restos de conchas, alimentos e outros materiais descartados por um grupo, que habitava uma região até esgotarem seus recursos e irem embora.
Importante
Precisamos reforçar essa ideia, pois alguns dos dados que vamos apresentar são deduções baseadas nas evidências atuais. A História também é uma ciência de descobertas! Isso significa que, daqui a alguns anos, podemos encontrar novos vestígios que ajudem a confirmar ou mudar nossas hipóteses. Por isso, vamos alinhavar as teorias atuais.
A primeira delas, e mais surpreendente, é que os seres humanos começaram a se adornar antes de mesmo de se vestirem!
O fator climático acompanhava diretamente os primeiros grupos humanos, que buscavam se instalar em espaços geográficos mais confortáveis, com recursos hídricos e naturais abundantes. O uso de roupagens nasceu da necessidade para se proteger do frio, o que não era um fator comum para comunidades que migravam em zonas tropicais.
Vestígios de ossos e pedras mostram que os seres humanos do paleolítico usavam adornos, e possivelmente podiam pintar seus corpos nus. Ou seja, a palavra “acessório” não era nem um pouco cabível.
As sociedades humanas iniciaram, nesse longo período, o processo de associação simbólica que marcaria a estrutura das crenças e da organização social. Os adereços podiam informar ou revelar, por exemplo:
Posições ou conquistas de cunho social, como o caçador que, orgulhoso de abater um tigre, usa um colar com um de seus dentes
Os primórdios dos sistemas religiosos, muitos deles ligados a um matriarcalismo (COLER, 2008)
A estátua da Vênus de Willendorf (datada em torno de 28.000-25.000 AEC) faz parte de um grande grupo de estátuas, esculpidas em pedra, de deusas pré-históricas, que foram encontradas em vários sítios da Europa, mostra como, provavelmente, muitas comunidades do Paleolítico e do Neolítico foram articuladas pela presença do feminino, dominadas por mulheres e, não raro, eram androgâmicas.
Vênus de Willendorf
Encontrada em 1908 e atualmente exposta no Museu de História Natural de Viena. A estátua provavelmente representa uma divindade feminina, cujos atributos de beleza e força estão presentes. Note-se a ausência do rosto e que apresenta o corpo nu, envolto por algum adereço ou penteado específico. As razões pelas quais sua face está oculta fazem parte de algum elemento mítico de sua confecção (outras estátuas similares mostram rostos, e outras formas de adereço), mas o sentido está claro: a exposição do corpo era algo normal, o adereço é que indicava o aspecto simbólico da peça.
Essa ideia é corroborada por muitas sociedades encontradas na América e na Oceania, que usavam pinturas corporais, adereços, brincos, colares, mas permaneciam nuas. O caso de alguns grupos indígenas brasileiros exemplifica bem essa noção; o processo é similar em outras regiões do mundo, onde essas comunidades conviviam em um clima ameno e confortável, não necessitando do uso de roupas.
Índios xavantes do Xingu
Podemos notar a presença dos adereços, como brincos e colares, e ausência de vestimentas. A adaptação ao clima e as questões culturais permitiram que essas comunidades mantivessem um padrão muito similar ao de seus ancestrais por milênios.
Quanto ao uso de roupas, o etnólogo brasileiro Câmara Cascudo (1898-1986) afirmou, quase jocosamente, que:
Os primeiros humanos não se vestiam, agasalhavam-se!
(CASCUDO, 1983)
E estava certo!
O uso de roupagens parece estar intimamente ligado às migrações humanas e à sua entrada em espaços que exigiam adaptações climáticas. A tendência natural foi a de copiar os animais que resistiam melhor ao frio, graças às suas peles; e os primeiros Sapiens não tiveram muitos receios em caçá-los e tirar seu couro.
As primeiras vestimentas que conhecemos eram agasalhos e cobertas, feitos diretamente da pele de animais. Por milênios, os seres humanos não conheceram outra fonte para a confecção de suas roupagens. Com o tempo, começaram a retirar fiambres de pele para usar em costuras, desenvolveram agulhas de osso ou pedra e iniciaram a fabricação de vestimentas mais complexas.
agulhas
A invenção da agulha foi uma das maiores conquistas humanas da época; com ela, uma pessoa poderia costurar partes de couro ou de pele de vários animais e criar uma única cobertura ou traje, protegendo-a das intempéries naturais.
Reconstituição histórica das vestimentas humanas no Paleolítico
As primeiras vestimentas surgiram de preocupações funcionais, como adaptação ao clima e uso de recursos disponíveis (como peles de animais). Não havia questões em relação à nudez do corpo, que surgiriam somente milênios depois, nas sociedades urbanizadas.
E não foi só isso: além das roupas, que se ajustavam melhor ao corpo, os Homo sapiens paleolíticos começaram a produzir sacos e bolsas, que os ajudavam a transportar seus objetos pessoais.
Exemplo
Os primeiros cantis de água do mundo (os odres) foram, provavelmente, partes de animais (a bexiga, por exemplo), que eram curtidas, envoltas em couro, e utilizadas para armazenar água.
Gradualmente, a domesticação de animais contribuiu para implementar e diversificar a produção de peles, fornecendo um suprimento constante para a confecção de vestimentas.
Neolítico
A descoberta da múmia de Ötzi, em 1991, mostrou que entre o final do Paleolítico e o Neolítico, os seres humanos já haviam desenvolvido conhecimentos sofisticados no uso de peles de animais, em combinação com o uso crescente de fibras vegetais.
A análise dessa múmia, extremamente bem conservada, trouxe informações importantes:
múmia de Ötzi
Ötzi foi, provavelmente, um misto de pastor e caçador que viveu em torno de 3.500 AEC – era, portanto, um contemporâneo do alvorecer de egípcios e sumérios –, mas que estava em um grupo provavelmente nômade ou seminômade, distante ainda da ideia de urbanização, e muito fortemente ligado à fase Neolítica.
- dispunha de várias camadas de vestimentas, misturando diversos tipos de peles de animais, tanto domesticados quanto selvagens;
- suas roupas não eram mais simples agasalhos, contava com calças, casaco e um surpreendente sapato de couro.
Saiba mais
Bill Bryson (2011) descreve o espanto acadêmico quando o especialista em calçados, Vaclav Patek, reconstruiu o sapato, que se revelou incrivelmente confortável, durável e eficiente tanto para a caminhada em terrenos rochosos quanto para a proteção contra o frio.
Retalhos de tecido vegetal, encontrados no forro e nas linhas usadas em costuras, mostram ainda que a comunidade de Ötzi já começara a dominar o processo de fiação – embora estivesse tecnicamente atrasada nesse domínio, em relação às civilizações da África e da Ásia.
As reconstituições tentam reproduzir fidedignamente os trajes encontrados com a múmia de Ötzi, revelando a capacidade dos seres humanos em produzirem peças de vestuário eficazes contra o frio. Note o uso de vários cortes de peles de animais costurados.
Seja como for, a passagem para a época Neolítica envolve, entre outras coisas, o surgimento e domínio das técnicas de produção fabril, que só se desenvolveram graças à evolução da agricultura e marcaram uma mudança radical na forma de vestir. É o que veremos agora.
Surgimento do sarongue
Atualmente, quando vamos à praia, vemos muitas pessoas usando uma canga, um longo pedaço de tecido, em geral retangular, podendo ser usado de várias formas diferentes, como por exemplo:
Amarrá-lo como uma saia
Dar um nó ao redor do pescoço e transformá-lo em vestido
Fazer um “tomara-que-caia”, sem alças, similar a quando nos enrolamos com a toalha de banho
Usá-lo como um tipo de xale
Se ainda fazemos isso, devemos agradecer aos nossos ancestrais milenares do final do Neolítico, que criaram a primeira forma de roupa conhecida na história da humanidade:
Sarongue é o nome dado, na Malásia, a esse tipo de roupagem, que constitui exatamente em uma peça de tecido retangular longa, cujas dimensões podem variar, mas que deve, essencialmente, ser capaz de cobrir dois terços do corpo ou mais.
O termo foi popularizado pelos antropólogos e viajantes europeus no século XIX, que ao estudarem as sociedades do Oceano Pacífico, identificaram as vestimentas desses grupos por essa palavra de cunho genérico – e ela acabou se consolidando.
Em muitas partes da Índia, da África, do Sudeste asiático e em vários arquipélagos da Oceania, o sarongue é uma roupa tradicional, cotidiana, usada tanto por mulheres quanto por homens.
Homens da Malásia usando sarongues, Whitney Caspar, 1905.
Mesmo sendo um corte único de tecido, podemos observar seu uso criativo, suas diversas formas de emprego e os padrões de cor e estilo, que indicam suas origens, influências culturais e artísticas. Muitos homens gostam de usá-lo no formato de saia, combinando com camisetas ou camisas de paletó; enquanto as mulheres utilizam-no com vários outros tipos de roupas e acessórios.
As fotos foram feitas em 1905 por Whitney Caspar (1869-1929), um dos autores que ajudou a difundir a palavra “sarongue” como sinônimo de “roupa primitiva”.
A popularização do termo, porém, não contribuiu muito para compreender a origem desse tipo de vestimenta. Ela se trata, de fato, da primeira forma de roupa que conhecemos na história da humanidade, sendo encontrada no Egito, na Mesopotâmia, Índia e China.
No Neolítico, quando os seres humanos começaram a costurar peças de pele, precisaram utilizar agulhas e algum tipo de fibra em forma de fio. Como vimos, as primeiras agulhas foram de osso, madeira ou pedra, e os primeiros fios foram feitos de retalhos de pele animal. As sucessivas experiências com as espécies vegetais, porém, levaram à constatação de que era possível usar fibras vegetais, formando tramas com seus filamentos (NOSCH, 2013; PEZZOLO, 2008). Os primeiros fios foram feitos, provavelmente, em forma de barbante, trançando as fibras entre si.
fibras vegetais
As primeiras plantas a se mostrarem viáveis nesse sentido foram o linho, o cânhamo e o algodão. Na China, desenvolveu-se também a bem-sucedida experiência de usar fios de insetos, que culminariam na produção da seda.
O conhecimento adquirido, na confecção de cestos com tramas de palha e tranças de cipós, pode ter contribuído na elaboração dos esquemas de produção de tecidos. A experiência com o uso de fibras vegetais mostrou, pouco a pouco, sua enorme versatilidade. Era possível realizar tramas complexas, que produziriam retalhos cada vez maiores de tecido. Esses panos também podiam ser tingidos e pintados com facilidade, além de serem confortáveis e ajustáveis às temperaturas em combinação com outras fibras. Sua confecção tinha demanda de duas coisas que ainda estavam se desenvolvendo no Neolítico:
Suprimento constante de fibras vegetais
Tecnologia de Tecelagem adequada
Saiba mais
Para uma sociedade nômade ou seminômade, achar pés de algodão ou cânhamos espalhados por aí não era das tarefas mais simples e, por isso, é compreensível que eles fossem empregados somente na costura. Depender de animais – caçados ou criados – era um fator limitante para a confecção de vestimentas, pois o uso de sua pele dependia quase sempre do abate. Mesmo o uso da lã de ovelhas e carneiros, por exemplo, demorou bastante para se desenvolver em direção à tosquia; em geral, era mais fácil usar sua carcaça de forma inteira. Além disso, a criação pecuária acompanhou o processo de sedentarização – era necessário delimitar pastos, ou mesmo, criá-los.
As dançarinas de Cogul (El Cogul, Catalunha) é uma pintura rupestre, localizada na Catalunha (Espanha), e mostra um grupo de mulheres supostamente comemorando uma caça. Notemos o uso de longas saias; ancestrais do sarongue, elas podem ter sido feitas de fibras animais ou vegetais e começaram a fazer parte do vestuário no mundo Neolítico. Seria a revolução agrícola que permitiria sua produção em larga escala, criando uma vestimenta básica e acessível.
Há certo consenso de que o desenvolvimento das técnicas de agricultura deu um impulso decisivo para o novo uso das fibras vegetais. Além da lavoura fornecer uma provisão contínua e muito maior de fibras, ela permitiu que camponeses e artesãos pudessem experimentar suas propriedades, desenvolvendo os meios mais adequados de confeccionar as tramas.
Os humanos, do final do Neolítico, já sabiam produzir fibras vegetais, tosquiar sem matar e, principalmente, preparar fios que seriam utilizados não apenas para costurar, mas também para tecer. Os primeiros teares (e possivelmente as rocas) surgiram dessas pesquisas iniciadoras, embora fosse possível urdir os fios por exaustivos meios manuais.
Em uma revolução no vestuário, as primeiras peças de roupa tecidas que conhecemos são praticamente idênticas à ideia do sarongue. Elas nasceram versáteis, unissexuadas, em tamanhos variados, mas podendo ser usadas de muitas maneiras. Em comparação às vestimentas de Ötzi, elas poderiam parecer até mais simples e menos elaboradas. Isso, porém, está longe de ser verdadeiro!
As roupas de Ötzi foram feitas de pedaços de peles cortadas e costuradas, em uma modelagem relativamente fácil de ser feita
Já a produção de um tecido leva tempo e envolve uma cadeia relativamente complexa de produção. É necessário produzir os fios, separá-los, urdi-los e confeccionar a trama
O tecido pode ser cortado, pintado, e fios de cores diferentes podem ser usados para criar padrões e figuras em meio à tessitura. Seu uso envolve o desenvolvimento de técnicas ou acessórios que compõem a vestimenta.
técnicas
O simples ato, como o de amarrar o pano atrás do pescoço ou na cintura, envolve manejos que preveem conforto, segurança, ajuste etc.
Por qual razão os seres humanos fizeram a opção por usar esse tipo de roupa? Não seria mais simples continuar usando vestes feitas de peles de animais?
As repostas para isso não são simples e continuam sendo debatidas.
dificuldades
Espaço, recursos, domínio do tempo e do clima e limitações de deslocamento, causados por doenças, ferimentos, idade etc.
1
Primeiramente, nossos ancestrais perceberam que uma vida nômade tinha dificuldades específicas.
2
A vida sedentária foi capaz de produzir recursos mais abundantes e de gerar a previsibilidade.
3
Era mais fácil, embora trabalhoso, sobreviver de uma plantação e de uma criação do que se sujeitar aos caprichos da natureza, sem saber se, no dia seguinte, haveria caça ou não.
4
O manejo do espaço e das técnicas de plantio tornou a vida cada vez mais segura e garantida, proporcionando uma explosão demográfica.
5
Os sedentários desenvolveram tecnologias mais complexas, com base nos recursos crescentes que advinham da lavoura, da pecuária e do artesanato.
6
A produção de tecidos vegetais e o uso de peles animais podia ser planejada, proporcionando recursos renováveis e especialização no trabalho.
Mesmo na fase nômade, tecidos vegetais já eram utilizados de forma simbólica, ainda que escassa e restritamente (ANAWALT, 2008). Sua difusão, junto com a agricultura, frutificou como consequência natural do desenvolvimento técnico humano.
O sarongue foi, portanto, uma conquista da humanidade, e seja qual for o nome que recebeu em cada uma das sociedades que o usaram, ele significou uma revolução nos hábitos de vestimenta.
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MÓDULO 2
Identificar as principais questões que permeiam a formação da indumentária no Crescente Fértil
Premissa
O termo Crescente Fértil é uma criação historiográfica, mas com um forte sentido geográfico. Ele aponta para uma região no chamado Oriente próximo, nos limites entre Europa, África e Ásia. Contemporaneamente, nessa região, notou-se três elementos fundamentais:
A presença de uma produção agrícola importante nos leitos dos rios da região
Uma intensa circulação econômica, militar e cultural entre esses núcleos populacionais
O crescimento de centros urbanos, cidades hierarquizadas e satélites de relações políticas, desenvolvimento de arquitetura e arte
É sobre essas regiões que estudaremos a seguir.
Egito
A história da Antiguidade Oriental é feita basicamente a partir de tumbas, ruínas e da literatura de época que virtualmente dispomos. Por meio delas, percebemos as conexões com o passado, as heranças e ideias que essas civilizações e seus personagens nos legaram. O estudo dessas culturas antigas nos permite realizar a difícil e complexa travessia entre a fase “pré-histórica” e um mundo em que as sociedades se preocupam em imprimir uma imagem de si mesmas no tempo e nas coisas.
Dessas muitas culturas, a civilização do Egito possui origens que possibilitam um quadro enriquecedor sobre a passagem do Neolítico para o chamado “Mundo Antigo”.
Atenção
Curioso notar que os egípcios surgiram e se desenvolveram no continente africano; seu papel, porém, ultrapassa limites geográficos e temporais. O Egito se constituiu em uma poderosa influência intelectual, artística e material tanto para a África quanto para o Oriente Médio e a Europa Mediterrânica.
É inviável, por exemplo, tentar qualquer estudo mais completo do mundo grego desconhecendo que seus filósofos iam até o Egito em busca de conhecimento; essa terra foi palco de disputas prolongadas de religiões e culturas, e seu passado segue como um objeto importante de discussão.
Comentário
No Brasil, a tradução de alguns trabalhos seminais de Cheik Antha Diop (2012) também contribuiu fortemente para resgatar os laços do Egito com sua africanidade, elemento pouco evidenciado nas abordagens sobre História Antiga.
Brasil
Historiadores como Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013), Júlio Gralha, Margareth Bakos, Arnoldo Doberstein, Moacir Elias Santos e Liliane Coelho contribuíram bastante para difundir o campo da Egiptologia no país, mostrando aspectos importantes de sua história e cultura.
O desenvolvimento e a sofisticação da civilização egípcia a tornam uma das mais importantes e fundamentais culturas para a compreensão da aurora dos povos. Veja a seguir alguns dos aspectos mais importantes da cultura egípcia.
Agricultura e tecnologia
A civilização egípcia é herdeira direta de suas raízes neolíticas, desenvolvendo um longo e sistemático processo de domínio do meio ambiente. Era uma cultura ecológica, cujo sistema de sobrevivência se articulou diretamente ao ciclo de cheias do rio Nilo, que abastecia a agricultura de fartos recursos hídricos.
Sua produção agrícola foi muito bem-sucedida, tornando-se uma fonte de cereais não apenas para o Egito, mas também para a exportação sazonal.
Os egípcios foram multifacetados na tecnologia. Sua entrada na Era do Ferro foi mais tardia que seus congêneres no Oriente Médio, porque o bronze atendeu, por milênios, suas necessidades artesanais e militares. Todavia, um longo processo de experimentação, tanto técnico quanto empírico, levou a uma série de conquistas notáveis no campo da Arquitetura – como é o caso conhecido das pirâmides e dos templos –, da Medicina, Astronomia, Matemática, Química, entre outros (RONAN, 1989).
ciclo de cheias do rio Nilo
As variações de volume do Nilo eram bastante regulares, permitindo que os egípcios se adaptassem ao seu ritmo, compondo inclusive um calendário de três estações ao ano (cada uma de quatro meses, formada pelo período de cheia, de plantio e de colheita).
A Arqueologia tem proporcionado um quadro cada vez mais vivo do processo de desenvolvimento da cultura material egípcia, mostrando sua evolução paulatina desde a “Pré-História”.
Religiosidade e sociedade
Os egípcios se mostraram intimamente conectados à natureza, revelando em suas divindades os traços de uma herança imaginária de antropozoomorfismo. Suas crenças se baseavam na ideia de uma possível vida após a morte, em um mundo extrafísico, administrado por essa mesma plêiade de divindades, que foram agrupadas desde o período de formação e unificação do território egípcio em torno de 3.000 AEC. Sua intervenção no mundo físico, porém, era regular e constante, e os dois mundos – material e “espiritual” – estavam relativamente integrados.
antropozoomorfismo
Deusas e deuses que representam atributos e conceitos humanos, mas com partes simbólicas zoomórficas.
Figura de Hórus, templo Kom Ombo
Como muitas outras divindades, Hórus é representado com um corpo humano e a cabeça de falcão, que encarna um dos atributos da realeza.
A conexão com o divino se manifestava na figura do faraó, soberano que administrava o reino do Egito como uma espécie de deus encarnado, filho de Hórus (o deus da realeza). Com base nisso, a sociedade desenvolveu-se dentro de uma relativa hierarquização, na qual:
Camponeses e artesãos (a maioria da população) situavam-se nas classes mais baixas.
Escribas, sacerdotes, militares e donos de terras, além da casa real, que compunham a elite e detinham o monopólio da escrita e das tradições.
Comentário
A presença de escravos nessa sociedade foi muito baixa, embora eles existissem, e a ideia de que os egípcios teriam escravizado povos inteiros não procede e nem encontra amparo na análise mais ampla das fontes.
A história egípcia organizou-se em função de suas dinastias, casas reais fundadas com base em certas famílias, que determinaram a condução do poder, em linhagem sucessória, dentro de certos períodos. No campo das expressões artísticas dos egípcios, fornecem pistas substanciais para compreender como funcionava esse sistema político, cultural e social – e que se manifestam, diretamente, na questão do vestuário.
Arte, cultura e religião egípcias
A arte egípcia resulta de uma longa codificação de expressões imagéticas, que visavam transmitir determinadas ideias, certos símbolos e cumprir um esquema interpretativo organizado. Isso significa que, ao longo de séculos, os egípcios fizeram diversos desenvolvimentos a partir de suas primeiras representações pictóricas. Um exemplo disso é a:
Escrita hieroglífica
Como muitos outros sistemas surgidos na antiguidade, ela surgiu de pictogramas e ideogramas, modificou-se ao longo do tempo e adquiriu um formato próprio, cuja sistematização contribuiu para criar uma unidade linguística para essa civilização no final do quarto milênio AEC.
Saiba mais
Pictograma é o desenho ou a pintura que tenta representar diretamente uma imagem ou um objeto. O ideograma é o desenho ou a pintura que tenta representar uma ideia, a partir da junção de elementos pictóricos ou codificados. Na Mesopotâmia e na China, encontramos sistemas similares; e no caso específico dos chineses, sua escrita obteve sucesso em desenvolver-se dentro desse esquema representativo, sendo atualmente uma das mais conhecidas linguagens do mundo.
As representações pictóricas cumpriam uma agenda cultural. Por isso, não se deve estranhar personagens de tamanhos diferentes em uma mesma cena: as figuras maiores expressam a ideia de poder e importância política.
Homens e mulheres são usualmente representados com corpos belos e perfeitos; como muitas dessas pinturas são achadas em tumbas, desejava-se conservar uma impressão positiva sobre a pessoa falecida.
Algumas pinturas narram cenários completos, que podemos visualizar, atualmente, de modo semelhante a uma história em quadrinhos (MCLOUD, 1995). Elas são ótimas evidências de como os egípcios se vestiam, paramentavam-se, e o seu valor simbólico.
Os egípcios liam em ziguezague, de baixo para cima.
A tumba de Menna
Vemos uma seção do mural existente na tumba de Menna, escriba egípcio que teria vivido entre 1.400-1.300 AEC. Ela retrata as atividades de trabalho nos campos, sob supervisão do escriba.
Grande parte do que sabemos sobre os egípcios vem, justamente, de suas tumbas. Em função de sua crença em uma vida após a morte física, eles depositavam nas câmaras mortuárias diversos objetos pertencentes àquele que morrera. A fartura de materiais – incluindo aí roupas, calçados e adereços – nos permite ampliar bastante o quadro que temos da indumentária no Egito e mesmo, do fenômeno da moda.
Indumentária egípcia
Experientes agricultores, os egípcios investiram na produção dos mais diversos tipos de fio vegetal, embora dessem ampla preferência ao uso do linho, confortável e prático para o ambiente quente do país.
uso do linho
Os egípcios adequaram suas roupas ao clima, tirando bom proveito dos materiais e investindo em uma moda confortável que atendia a seus padrões de pudor e moral.
Dica
As representações pictóricas mostram, em geral, roupas de cor branca – mas lembremos, a arte egípcia usava certos códigos e formas de expressão, o que não necessariamente reproduzia o cotidiano. Encontramos roupas coloridas nas tumbas, embora elas realmente sejam em menor número.
Duas vestimentas podem ser consideradas como básicas na vida do Egito antigo:
Uma espécie de túnica unissex, longa, feita a partir de um grande pedaço retangular de tecido vegetal, e moldada ao corpo com ou sem o uso de adereços, como alças, cintos ou correntes.
kalasiris
Usualmente feita de linho, muitas vezes é representada de forma semitransparente, servindo de cobertura.
Detalhes da tumba de Menna
Nessas imagens, podemos ver o senhor das terras, usando um kalasiris transparente com um chanti por baixo. Em seguida, vemos um funcionário usando o chanti e uma cobertura (um xale ou camisa) vestindo o torso; na terceira imagem, um homem usa uma kalasiris semitransparente, enquanto o servo está apenas com sua chanti, sem outras vestimentas.
Comentário
Vemos aqui a nítida influência da teoria do sarongue, a partir de uma peça simples e única de tecido, uma sociedade pode criar formas sofisticadas de uso, adequadas às suas necessidades e questões culturais.
Com o tempo, pequenas mudanças foram surgindo nessas vestimentas básicas. As mulheres começaram a usar vestidos mais longos, em formas de tubo, e às vezes com mangas curtas. Os egípcios aprenderam também a drapejar e plissar os tecidos, criando dobraduras requintadas nas roupas.
Rainha Nefertari e a deusa Hathor
Hathor, deusa da fertilidade e fartura, leva pela mão a rainha Nefertari (séc. XIII AEC), em uma pintura de sua tumba. Note duas formas diferentes de usar o kalasiris, que podia ser amarrado ou enrolado ao corpo, deixando ou não os seios descobertos.
Usavam uma roupa intima feita de um pedaço menor de tecido, que homens, mulheres e crianças vestiam da mesma maneira. No trabalho dos campos, porém, essas roupas parecem ter sido de uso comum, uma espécie de tanga de uso público.
Na sociedade egípcia, a nudez não era considerada estritamente imoral, mas havia espaços específicos onde se podia mostrar um corpo nu ou seminu.
nudez
Além das crianças, isentas de restrições, vemos algumas cenas de festas com dançarinas nuas, um dos momentos em que o corpo poderia ser exposto de forma mais livre. Essas figuras femininas usam joias e adornos, o que reforça a ideia de que os ornamentos podem ter vindo antes e serem, em muitas ocasiões, mais importantes que a própria vestimenta.
Atenção
Uma ideia muito difundida em textos sobre história do vestuário no Egito é de que essa civilização se recusava a usar peles de animais por considerá-las impuras. É um claro equívoco. Os egípcios usavam lã animal para fazerem kalasiris mais grossas e capas com as quais se protegiam do frio da noite e de ocasionais invernos rigorosos.
A classe sacerdotal envergava trajes de pele de leopardo, uma vestimenta reservada e sinal distintivo de sua condição perante a sociedade.
Mesopotâmia
Diferentemente do Egito, a Mesopotâmia é uma região, e não uma civilização. Ela compreende um gigantesco vale, situado entre dois grandes rios, o Tigre e o Eufrates, cujas cheias periódicas ajudam a irrigar os vales circundantes, gerando uma grande extensão de área fértil. Essa conformação geográfica atraiu dezenas de povos para esse espaço, tornando-o o berço de algumas das civilizações mais antigas e avançadas do mundo antigo.
No período entre 7.000-5.000 AEC, encontramos sítios arqueológicos que nos indicam formações urbanizadas da região, conectando-as com suas origens “pré-históricas”. Essas localidades da Mesopotâmia estão entre as primeiras cidades da história, herdeiras diretas das comunidades agrárias neolíticas. As narrativas sobre as origens e tradições dessas sociedades nos fornecem um quadro vivo sobre a evolução histórica dos povos que habitaram a região (LEICK, 2003).
Alguns pesquisadores brasileiros se dedicaram à complexidade das relações étnicas e culturais que organizavam a vida na região. Emmanuel Bouzon foi um dos mais destacados tradutores de textos mesopotâmicos no Brasil, com uma produção referencial.
região
O termo “mesopotâmia” vem do grego, e significa “entre rios”. A região está situada no atual Iraque.
Saiba mais
Além das obras de Emmanuel Bouzon, mais recentemente, Kátia Pozzer, Simone Dupla, Priscilla Scoville, Anita Fattori e Marcelo Rede têm dado continuidade ao trabalho de pesquisa sobre o tema em nosso país, mostrando que o antigo oriente está bem próximo de nós.
E o que essas pesquisas nos revelam?
Analisar a Mesopotâmia é se deter à história de uma região habitada por povos diferentes. Isso significa idiomas, escritas, crenças e costumes distintos; mas a relação entre esses povos gradualmente teceu pontos de encontro culturais, aproximando-os e fazendo com que compartilhassem tradições em comum.
Houve momentos em que os povos lá instalados buscaram exercer seu domínio uns sobre os outros: sumérios, acádios, amoritas, assírios e babilônios se destacaram politicamente no cenário regional, fossem como centros culturais ou como impérios políticos.
Agricultura e tecnologia
O trabalho de controle das águas na Mesopotâmia era diferente do Egito. Como o ciclo das inundações era irregular, desde cedo as comunidades instaladas na região precisaram desenvolver técnicas de controle hídrico, incluindo aí canais, represas, diques, barragens, rede de irrigação etc.
Essas conquistas tecnológicas só foram possíveis pelo considerável esforço coletivo, resultando no nascimento de complexas relações sociais e culturais entre os povos.
Religião e sociedade
Talvez por isso, os mitos compartilhados pelas culturas mesopotâmicas não colocavam a região como uma parte integrante do mundo divino. As civilizações da região entendiam habitar um espaço físico em que os deuses estavam relativamente distantes depois de suas decepções com os seres humanos. Isso se refletiu nas crenças e na construção da estrutura política. Veja mais a seguir:
conquistas tecnológicas
O desenvolvimento do maquinário e das técnicas para tal tarefa propiciou um surto tecnológico, envolvendo os mais diversos campos do saber, como Matemática, Física, Engenharia, Metalurgia, entre outros (RONAN, 1989).
decepções com os seres humanos
O mito do dilúvio, narrado pela primeira vez nos textos mesopotâmicos de Ziusudra e Gilgamesh. Os deuses, insatisfeitos com a humanidade, resolvem afogá-la em uma grande inundação. Atualmente, sabe-se que os mitos de inundação são muitos comuns em várias sociedades que iniciaram sua existência próxima de cursos d’água, inexistindo em outras onde o modelo de desenvolvimento não dependeu da manipulação direta de recursos hídricos fluviais.
A religiosidade mesopotâmica se desenvolvera em direção ao henoteísmo, variação importante das práticas politeístas.
O rei (lugal, ensi ou patesi) era considerado um representante dessa divindade na Terra, escolhido para cumprir funções políticas e religiosas; ele não era uma divindade encarnada, mas um ser humano abençoado.
henoteísmo
Henoteísmo é o culto de um deus único em que coexistem várias divindades e não se nega a existência de outras. Respeitados por todas as camadas sociais, mas cada comunidade ou grupo pode dedicar-se à monolatria (ou seja, privilegiar o relacionamento com uma divindade específica, em detrimento de outras). Isso fez com que as cidades tivessem suas divindades protetoras, e os reinos gradualmente adotaram essa perspectiva. Mesmo assim, havia um clima de tolerância e diversidade em relação às práticas religiosas.
A perspectiva sobre a vida após a morte não era nem um pouco otimista; mesmo assim, encontramos grande variedade de tumbas, depósitos arqueológicos, ruínas de templos (destacando-se os zigurates, enormes prédios com fins cerimoniais sagrados) que nos propiciam informações relevantes sobre os vários períodos históricos vivenciados pela região.
Uma quantidade substancial de achados textuais – documentos, livros e cartas – nos ajudam a recompor a vida cotidiana e o imaginário das sociedades. Além disso, inúmeros monumentos com relevos, esculturas e pinturas nos trazem importantes narrativas dos eventos políticos e religiosos, além de nos fornecer imagens sobre a vida comum.
As artes, na Mesopotâmia, não foram tão rigidamente codificadas como no Egito, pois a diversidade de povos imprimiu características particulares nas produções estéticas.
Sumérios
Os sumérios aparecem vestidos na arte com o kaunakés (ou gaunaca), tipo de roupa que se identifica com teoria do sarongue, um longo recorte de tecido amarrado à cintura, formando uma saia que ia quase até os pés.
Agricultura e tecnologia
Um grande investimento foi feito no uso de lã caprina e ovina, graças aos imensos rebanhos que rodeavam as cidades. Embora conhecessem as tecnologias da agricultura, no campo do vestuário os sumérios seguiram um caminho das peles dos animais caçados, passaram aos pelos dos animais de criação, desenvolvendo uma indústria de tecidos de lã avançadíssima. Em torno de 4.000 AEC, as técnicas para esse tipo de produção já eram bem conhecidas e acompanharam o crescimento das atividades de pecuária.
Para completar a kaunakés, criaram xales com os quais se protegiam de temperaturas mais baixas. A moda era a mesma para mulheres e homens, sem distinção.
Embora muitas estátuas tenham perdido a cromagem original, alguns fragmentos de tecidos encontrados em tumbas mostram que os sumérios gostavam de tecidos coloridos, vivos e bem decorados, inserindo pequenos padrões geométricos nas tramas.
Embora soubessem tecer com linho, preferiram deixá-lo para uso restrito da nobreza. Por isso, roupas desse tecido só eram encontradas entre pessoas mais abastadas. Com o passar do tempo, alguns desses kaunakés começaram a ficar mais longos, subindo até a altura do peito, e tornando-se praticamente um vestido, continuamente usados por homens e mulheres. Veja mais a seguir:
tramas
Sabiam entremear na lã fios dourados, contas e pequenos adereços de metal; cores e estampas, com o tempo, tornaram-se também símbolos de status e prestígio.
Atenção
Um detalhe importante, que explica o grande domínio técnico alcançado pelos sumérios, está no acabamento das roupas. Desde aquela época, tecelãs e tecelões já sabiam produzir os mais diversos efeitos nos tecidos, como nós, desfiados, franjas e plissados; além disso, era comum o uso drapejado das roupas. O detalhamento estético também imprimia sua marca de sofisticação na indumentária.
No domínio da cultura material, foram identificados poucos vestígios de adereços e ornamentos. Os sumérios não os desconheciam, notamos o uso de cintos, cordões e pulseiras, e colares de metais e pedras preciosas.
O mesmo pode ser dito sobre o uso de maquiagem e dos cuidados estéticos: os homens sumérios deixavam suas barbas crescerem longamente, tratando-a com óleos, decorando-as e fazendo arranjos (como tranças e nós). O cabelo dos homens usualmente era raspado, das mulheres não. Elas também faziam penteados e podiam dispor de tiaras.
maquiagem
Algumas estátuas mostram olhos pintados, o que pode significar que os sumérios também praticavam esse tipo de maquiagem.
A rainha Puabi
Viveu em Ur, entre 2.600 e 2.340 AEC, e sua tumba foi encontrada no cemitério real da mesma cidade. Um dos achados mais preciosos é essa belíssima coroa de ouro, que revela a habilidade dos artesãos sumérios no trabalho com metais. O colar, feito de uma combinação de contas e pedras, demonstra igualmente os milênios de habilidade e experiência na combinação de materiais diversos.
Assírios, babilônios e o surgimento da túnica
A indumentária demorou séculos para apresentar modificações significativas na Mesopotâmia. Foi somente em torno de 1.300 AEC que a ascensão de um povo, os assírios, revelou novidades na indumentária local. A Assíria formava uma sociedade militarizada, disposta a empreender a conquista da Mesopotâmia e mais.
Sua capital, Nínive, possuía uma grande biblioteca e vários monumentos cujos baixos-relevos dispostos nas paredes contam muito de sua história de conquista e poder.
Se no campo militar eles foram um sucesso, na moda eles também deixaram sua marca:
São os assírios os primeiros a usarem uma túnica!
A famosa vestimenta era longa (que podia ser tecida por inteiro ou costurada) variando de extensão – até os joelhos ou mais. Era vestida pela parte de cima do corpo, tal como fazemos com nossas camisetas, e geralmente presa com um cinto ou faixa.
A túnica assíria possuía mangas curtas, mas é possível que desde aquela época já existissem também com mangas compridas. Além de se ajustar ao corpo, ela não corria o risco de cair ou se soltar como no caso dos panos amarrados ou drapejados, e mantinha as vantagens da saia com abertura na hora de se movimentarem.
Comentário
A túnica pode ser resultado de suas experiências de guerra, que exigiam uma roupa presa ao corpo de forma mais confiável, ou simplesmente desenvolveram a ideia do kaunakés usando primeiramente alças e depois construindo uma peça inteiriça. Seja como for, logo a moda se espalhou por todo o Oriente Médio, tornando a túnica uma roupa emblemática, ainda usada em várias localidades da região e do mundo árabe.
Os assírios também gostavam de usar cores e adornos, o que denotava a posição social. Vemos cintos e pulseiras trabalhadas, com um uso mais amplo de adereços de metal, além de lenços de tecido fino amarrados ao pescoço.
Eles também difundiram o cabelo e a barba comprida, tratando-os como elementos estéticos importantes. Cuidavam bem da barba, untavam com óleos e a pintavam. Faziam tranças e cachos tanto nela quanto no cabelo, e faziam questão de ressaltar sua beleza mesmo quando usavam seus elmos de combate.
A guerra, aliás, mostra outras novidades que os assírios ajudaram a popularizar. Além do elmo metálico, que protegia a cabeça de golpes mais duros, das sandálias de couro, resistentes e práticas, eles envergavam armaduras lamelares. Tornara-se patente que ir ao combate demandava mais do que uma arma e alguns adereços guerreiros decorativos em cima das vestes costumeiras.
A herança dos assírios foi absorvida quase por completo pelos seus sucessores, os caldeus ou neobabilônios.
armaduras lamelares
Couraças feitas com lâminas de metal amarradas por tiras de couro ou grampos de cobre.
A Babilônia era uma das cidades mais importantes da Mesopotâmia, tendo conhecido períodos de grandeza em seu passado. Lá foi a sede do governo de Hamurabi (1792-1750 AEC), grande rei e sábio que promulgou um importante código jurídico na época.
Depois disso, ela alternou períodos de maior e menor importância, até que no século VII AEC uma coligação de povos resolveu combater o domínio assírio, alcançando uma expressiva vitória. Os caldeus, que lideraram a revolta, assumiram o poder e instalaram a capital novamente na Babilônia, restaurando seu esplendor.
Os babilônios contribuíram com a indumentária antiga preservando as inovações dos assírios e divulgando-as entre os povos do Oriente Médio. Eles pouco inovaram em relação aos seus predecessores, mas ajudaram a promover seu estilo de vida e diversificaram o uso de materiais nos tecidos, agora importados de várias regiões e em quantidades significativas.
Criou-se um mundo inteiramente novo de roupas, tecnologias fabris, adornos e uso de metais, que combinariam com suas próprias tradições e modas. Essas descobertas contribuiriam para criar perspectivas na indumentária oriental por meio da grande rede de trânsitos culturais e comerciais que surgiria justamente no Império Persa.
No vídeo a seguir, o professor André da Silva Bueno comenta a indumentária egípcia. Vamos assistir!
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MÓDULO 3
Descrever o papel da indumentária nas primeiras civilizações sedentárias da antiguidade no Oriente
Persas: túnicas, robes, mantos e calças
Em torno do segundo milênio AEC, uma grande leva de povos, vindos provavelmente do Cáucaso, iniciou uma demorada marcha em direção ao Sul, em busca de planícies mais quentes e férteis. Nômades ou seminômades, eram criadores experientes, possuindo rebanhos de gado, carneiros e cavalos (que, supõe-se atualmente, ajudaram a domesticar) e precisavam de vastas extensões de terras para pasto.
Já dominavam também técnicas refinadas de metalurgia, empregada na fundição de armas, peças de carros e acessórios de montaria, entre muitas outras finalidades. Eram igualmente guerreiros, envolvidos em disputas constantes por espaço e recursos naturais. Talvez por isso denominassem a si mesmos de “arianos”, palavra que significava “senhores”.
Resumindo
Os “arianos” praticavam formas de politeísmo e enterramentos sobre os quais ainda conhecemos pouco, mas que mostram suas crenças e seu modo de vida. A análise de suas formas linguísticas permitiu que, no século XIX, eles fossem identificados como tendo alguma raiz comum, expressa pelas identidades de estruturas e palavras entre vários idiomas europeus e orientais; acabaram sendo chamados pela historiografia da época de indo-europeus.
Sabemos atualmente que eles migraram para a Índia (como veremos adiante), adentraram as planícies do Irã e chegaram à Europa, formando parte dos núcleos civilizacionais que conhecemos como grego, latino, celta e germânico. Esses povos formavam grupos bastante diversos entre si, cujo parentesco foi evidenciado por uma profunda análise de suas heranças linguísticas e culturais.
Dentre esses povos, os persas alcançaram um destaque especial; eles se instalaram no território iraniano, construindo ali uma das civilizações mais pungentes da antiguidade. Em torno dos séculos VIII-VI AEC, uma nova forma religiosa nativa, o mazdeísmo, modificaria seus costumes e suas crenças.
Mazdeísmo
Criada por um sábio chamado Zaratustra (em grego, Zoroastro), a nova religião pregava a existência de duas forças divinas, o bem e o mal, que disputavam a alma humana. No final, haveria uma grande batalha entre essas forças, culminando no fim do mundo. Essas teorias teriam um profundo impacto no pensamento judaico-cristão, que aparentemente absorveu algumas dessas ideias (TATSCH, 2009).
A nova sociedade que emergiu dessas revoluções intelectuais e políticas se transformou paulatinamente em uma civilização poderosa, cuja força articulou a existência de um estado formidável:
O império Aquemênida (550-330 AEC)
Os aquemênidas implantaram uma administração multiétnica, incluindo os povos dominados nas redes de poder, fazendo com que uma gigantesca extensão de terra fosse administrada de modo participativo e integrador (MORREAU, 1979; ASHERI, 2014).
Isso se refletiu no trânsito de ideias sobre moda e vestuário que envolveu o império. Os persas, em origem, tinham um modo particular de vestirem-se, mais identificado com pastoreio, geralmente a lã ou o couro, que incluíam calças e túnicas, cintos, sandálias e uma forma rudimentar de bota, tudo feito em couro. Com o tempo, tanto o clima quanto o contato com outras populações (principalmente da Mesopotâmia) imprimiram mudanças peculiares nas formas de vestimenta.
Vemos representações dos persas usando túnicas parecidas com as assírio-babilônicas, e robes – vestimenta longa, fechada com faixas ou cintos –, profusamente decoradas com franjas, bordados, bem coloridas e com padrões figurativos nas tramas.
As roupas também informavam o status social, e seu uso acompanhado de joalherias mostravam a riqueza daquele que as envergava – as peças privilegiavam a ourivesaria na forma de colares, brincos e braceletes. Os cintos continuaram a ser de couro, ricamente decorados com metal.
Indumentária e novidades persas
Os persas adicionaram algumas novidades nesse cenário:
Chamado também de kandys, foi uma espécie de manto com mangas compridas usado como capa ou como robe por cima de outra roupa. Podia manter apenas as aberturas no tecido, sem mangas, embora essa não fosse a opção mais comum.
Chamado também de sirwal ou saruel, foi uma calça folgada, em geral de linho ou algodão, de uso comum e herdeira do estilo dos cavaleiros. Dependendo da temperatura, ela poderia ser usada em combinação com robes e túnicas; e para proteger a cabeça tanto do calor quanto do frio, barretes de lã, feltro e couro.
Introduziram também o uso de meias empregadas tanto com sandálias quanto com botas.
Templo de Apadana, em Persépolis, Irã
Relevo mostrando um nobre usando sua kandu. Note as mangas folgadas na figura do meio, enquanto a primeira e a terceira figuras usam suas kandus como mantos, mostrando as mangas compridas. No templo, encontramos ainda essa marcha de soldados. A imagem é uma reconstituição histórica do relevo, mostrando o uso das calças (salvar) e de calçados.
Índia
Enquanto o Egito florescia na África, e os povos da Mesopotâmia erguiam suas cidades no Oriente Médio, outra civilização surgia no horizonte longínquo do leste asiático:
As cidades do vale do rio Indo, que, em torno de 3.300 AEC, começaram a brotar na região ao seu redor, aproveitando os campos férteis e a provisão regular de água.
Na Índia, as cidades do Vale do Indo seguiram o roteiro tecnológico da transição do período Neolítico, alcançando um notável desenvolvimento técnico e econômico.
Agricultura e tecnologia
Em torno de 1.500 AEC, a mudança gradual dos cursos de água unida a mudanças climáticas que desertificaram a região, forçou o abandono dessas cidades, levando a migrações em direção ao Sul do subcontinente indiano.
Mais ou menos nessa mesma época, outras ondas migratórias se dirigiram para a Índia, os mesmos povos indo-europeus, que começaram a se espalhar pelo Norte do atual território da Índia e do Paquistão e encontraram com as comunidades nativas. O encontro desses povos diferentes construiu, ao longo dos séculos, uma nova civilização, marcada pelo surgimento do Sanatana Dharma – ou, hinduísmo.
comunidades nativas
Esse encontro desenvolveu uma relação que alternava conflitos violentos com a convivência pacífica, resultando em um fértil processo de hibridismo.
hinduísmo
Essa forma de religiosidade henoteísta, composta por inúmeras divindades, e que defendia um ciclo reencarnatório de vida espiritual, estabeleceu-se gradualmente como “cimento cultural”, unindo as sociedades em torno de uma cultura religiosa comum.
Religião e sociedade
Apesar da vida política indiana testemunhar a existência de milhares de reinos ao longo de sua história, as sociedades se organizaram fundamentalmente a partir desses preceitos sagrados, que alcançaram uma continuidade histórica milenária.
A literatura indiana antiga nos revela como os indianos se hierarquizaram em função das crenças reencarnatórias, que propunham que o nascimento do indivíduo estava ligado à sua herança moral pregressa. Era o surgimento das castas, determinando o papel de cada um dentro da comunidade, com pouco espaço para mobilidade social.
Comentário
Essa cultura, que não privilegiava a manutenção dos corpos de falecidos, investindo em rituais funéreos de cremação, legou-nos pouquíssimas tumbas, o que dificulta tremendamente a reconstrução de sua história nos primórdios. Alguns depósitos materiais foram encontrados, dando-nos pistas da cultura material. Contudo, dependemos em grande parte não apenas da literatura sagrada, como também da manutenção dos ritos, das crenças e dos costumes, elementos cruciais para que possamos reconstituir seus hábitos e, consequentemente, a maneira como se vestiam.
A indumentária indiana é resultado desse encontro de culturas. O primeiro elemento latente é o domínio do algodão, que parece ter sido alcançado na Índia em torno de 5.000 AEC. Junto com o cânhamo, ele se tornou o elemento preferido para a confecção de roupas entre as populações nativas da região – embora eles não excluíssem o uso de peles.
Estátua do rei-sacerdote de Mohenjo Daro
Essa estátua é uma das peças mais antigas e elaboradas das culturas do Vale do Indo (Museu de Karachi, Paquistão). O personagem usa algum tipo de vestimenta que não podemos definir com precisão, podendo ser um robe ou xale. Supõe-se, em função do padrão decorativo inserido na trama do tecido, que ele representaria o uso de fibras vegetais.
Indumentária da Índia na antiguidade
Como ocorreu em outras culturas que examinamos até aqui, a Índia também teve o seu sarongue. Pelas evidências que dispomos, as sociedades do Vale do Indo já usavam fartamente tecidos vegetais. As primeiras peças que parecem ter se tornado mais comuns foram:
Os dhotis
Um longo pedaço retangular de tecido sem costura, que podia ser enrolado ao corpo de diversas maneiras, ao estilo de uma saia, usado tanto por homens como por mulheres.
Os veshti ou paridhana
Um corte de tecido menor; era usado da mesma maneira e aparentemente em atividades que requeriam mais praticidade.
O Sari
Com o tempo, surgiria também o sari, um retângulo de tecido de dimensões variadas, mas ainda maior que o dhoti, empregado somente por mulheres. Suas dimensões visavam envolver o corpo feminino e criar uma forma de alça sobre um dos ombros; quando necessário, o arranjo permitia, inclusive, cobrir a cabeça, como uma espécie de véu.
Quase todas essas formas de enrolar os tecidos incluíam arranjos drapejados; no caso dos saris, a decoração e qualidade do tecido serviam também para indicar a condição social, um elemento supremo na sociedade de castas. Veja mais a seguir:
Note que permanece a concepção antiga de utilizar uma única peça de tecido.
Saiba mais
Junto a essas peças, os indianos desenvolveram xales (sati ou dusala), usados para proteger tanto do frio quanto do calor. De tecidos leves e confortáveis, os xales surgiram a partir de necessidades práticas, podendo ser usados como véus, lenços, cachecóis ou simplesmente jogado sobre os ombros, como toalhas. Dusalas mais longos podiam ser usados, também, em rituais.
Com o tempo, adquiriram também uma conotação estética e decorativa, responsável por torná-los peças coloridas e belamente trabalhadas com os mais diversos tipos de padrões e materiais.
China
O relativo isolamento da China, em seu passado mais remoto, não impediu que ela se desenvolvesse como outras partes do mundo. Encontramos vestígios “pré-históricos” bem antigos na região. Como é o caso do Sinanthropus pekinensis (ou Homo erectus pekinensis), um dos primeiros hominídeos da história, datado de aproximadamente 500.000-250.000 AEC, significando que os chineses passaram pelas fases históricas do Paleolítico e o Neolítico, e sua civilização emerge diretamente delas.
Como outros povos, também começaram se estabelecendo ao longo de rios – a bacia do rio Huang foi a principal área desses primeiros assentamentos. Apesar do farto suprimento hídrico e do terreno fértil, as cheias irregulares causaram milhares de desastres ao longo do tempo, forçando as comunidades a desenvolverem um esforço coordenado e exaustivo de controle das águas.
Religião e sociedade
Os chineses estavam separados do Oeste indiano por uma vasta cadeia montanhosa e tiveram que construir sua cultura praticamente sozinhos. Suas crenças mantiveram-se ligadas às origens xamânicas, prestando culto a divindades naturais e se conectando com o mundo espiritual. Acreditavam também em uma vida além, atestadas por tumbas cheias de artefatos, com os quais descobriu-se muita coisa sobre seu cotidiano. Com o tempo, as divindades chinesas ganharam personificações humanas, que acompanharam o ritmo de desenvolvimento da civilização.
Os chineses mantiveram também sua estrutura escrita original, de pictogramas e ideogramas, que nos permite acessar seus textos mais antigos, propiciando uma conexão especial com o passado, com redação de textos históricos bastante antigos.
A estrutura escrita original nos informa que, desde o segundo milênio AEC, os chineses já haviam estabelecido um poder político relativamente unificado, a dinastia Xia. Ela seria a primeira de muitas e, ao longo dos milênios, a China se expandiria, viveria períodos intensos de união e fragmentação, e sua história se transformaria no cerne de sua cultura.
cultura
Pouco estudada no Brasil, a China antiga ainda merece um olhar mais atento. Os estudos de Ricardo Joppert (1979) são a grande referência em nosso país, junto com as traduções relevantes como de William Watson (1969), Marcel Granet (1979) e Maurizio Scarpari (2009). A coletânea de Bueno (2011) também nos fornece uma contribuição nesse sentido.
Agricultura e tecnologia
Como parte da construção dos seus saberes, a busca de uma “harmonia” com a natureza gerou teorias científicas próprias, utilizadas para compreender as estações do ano, as condições apropriadas para a produção agrícola e artesanal. Em torno do segundo milênio AEC, nas experiências com metalurgia, os chineses conseguiam produzir grandes quantidades de objetos e peças de arte dos mais diversos tipos (LEDDEROSE, 2001).
Alcançando avanços em vários campos, os chineses foram os únicos a produzirem tecidos a partir de insetos – a seda – e acompanhou a evolução da agricultura e da pecuária, revelando uma capacidade singular de observação zoológica e botânica.
a seda
A criação de certo tipo de lagarta de mariposa (Bombyx mori), cujos casulos geram os fios da seda, era conhecida desde 4.000 AEC.
Os chineses revelam uma conexão direta com os tempos “pré-históricos”, que se desenvolveram em sentidos específicos. Desde cedo, empregaram couro e pele de animais, mas não desenvolveram uma indústria de lã. Dando preferência à criação de animais pequenos, como ovelhas, porcos e cães, usavam o couro modelado e costurado.
A produção de tecidos de seda e cânhamos desenvolveu-se bastante com a agricultura, tornando-se praticamente dominante. Posteriormente, com o desenvolvimento de contatos com as sociedades vizinhas, os chineses acabariam trazendo o algodão da Índia, que encontraria sucesso na produção têxtil do país.
Comentário
A China não parece ter testemunhado o “efeito sarongue”. Embora tenham começado, também, com faixas de tecido que envolviam partes do corpo, os chineses usavam retalhos menores, usados como tangas ou saias.
Posteriormente, surgiram túnicas rústicas. No frio, eles usavam pequenos casacos, que combinavam fibras animais e vegetais e, não raro, uma espécie de manto que servia de coberta.
túnicas rústicas
Em geral curtas, até as coxas ou os joelhos, pareciam longas camisetas sem mangas, amarradas na cintura por uma corda ou faixa, no qual se penduravam bolsas com pequenos utensílios. Era o vestuário dominante dos camponeses.
Uma de suas marcas, e quase um símbolo identitário chinês, é o grande chapéu redondo, feito de palha trançada, e amarrado ao queixo, que os lavradores usavam para se proteger do sol e da chuva.
chapéu redondo
Uma opção era usar um lenço amarrado à cabeça, que podia ser combinado com o chapéu.
Por fim, sandálias de cânhamo ou de couro completavam o estilo básico do povo chinês na antiguidade. Veja mais a seguir:
Shenyi e paofu
Shenyi e paofu eram as vestimentas populares, mas os chineses codificaram rigidamente o uso do vestuário ao longo dos séculos. No livro Liji, vários capítulos faziam menção e descrições das roupas, composição, modo de usá-las e seu papel social. Ele possibilita observar como a indumentária chinesa se desenvolveu desde os primórdios, e como ela alcançou um alto grau de sofisticação.
Liji
Livro dos ritos, ou Memórias da cultura, um importante clássico da literatura chinesa antiga, explicava vários aspectos dessa cultura.
Os chineses gradualmente desenvolveram uma espécie de robe, o shenyi, que se tornaria uma vestimenta de uso generalizado – e talvez por isso, os legisladores tenham interferido em sua forma para estabelecer critérios e manter a identificação de status.
shenyi
Suas mangas, muitas vezes de forma longa e folgada, sobravam por cima das mãos.
Os mais ricos usavam roupas inteiramente de seda, leves, resistentes e que podiam ser pintadas ou decoradas de muitas maneiras diferentes
O shenyi podia ser feito também de mesclas de tecido, que barateavam seu custo e tornavam-no acessível
Os chineses adoravam usar padrões e cores em suas roupas, tornando-as peças únicas.
Embora houvesse um efeito estético, não se abrira mão da praticidade. Os homens podiam amarrar as mangas, ajustando-as ao corpo; no frio, elas serviam como cobertas para braços e mãos.
Usualmente, o shenyi ia até os pés e podia ser amarrado na cintura com faixas de seda colorida ou cintos de couro com detalhes em metal. Por baixo, os chineses começaram a usar saias, as chang, completando o figurino.
figurino
Surgem bem depois na história chinesa – por isso, a singularidade da ausência dos sarongues nessa narrativa.
Relevo mural (séc. 1 EC), Sichuan Provincial Museum
Na figura, vemos uma exibição de músicos e dançarinos. Podemos observar dois dançarinos apenas de calças, um usando calça e túnica (no canto superior direito) e uma dançarina com um vestido esvoaçante e mangas compridas. Ela está usando umas das variações do shenyi, como veremos adiante. Os músicos estão vestidos com o shenyi comum, de mangas mais justas e curtas.
Com o tempo, um traje mais curto e justo ao corpo, chamado paofu, tornou-se popular substituindo o shenyi. Sua confecção era mais prática e podia ser usado em combinação com calças e bermudas (chamadas kun), o que foi amplamente apreciado por militares e trabalhadores, e acabou caindo no gosto geral.
Soldado usando um paofu, com bermudas compridas (kun)
De dimensões menores e muito mais práticas, os paofus se tornariam populares em todas as camadas da sociedade, passando também por variações de gosto e estilo. Dinastia Han, tumba em Yangjiawan, Shaanxi.
Para cobrir a cabeça, pequenos bonés e barretes de lã, feltro ou cânhamo eram usados pelos homens – alguns deles tinham uma função ritual, só podendo ser usados em ocasiões especiais. As mulheres podiam dispor de requintadas capas de pele, mas preferiam adornar a cabeça com tiaras e prendedores.
Quanto aos calçados, os chineses desenvolveram botas e também as ancestrais de nossas sapatilhas. Feitas em tecido mais rústico, com sola de palha ou couro, as versões mais antigas possuíam cordas com que podiam ser amarradas ao longo das coxas, evitando que elas saíssem dos pés. O recurso dava segurança ao seu uso cotidiano ou em atividades mais pesadas.
No vídeo a seguir, o professor André da Silva Bueno faz uma comparação entre a indumentária da Índia e a da China. Vamos assistir!
Verificando o aprendizado
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Conclusão
Considerações Finais
Temos certeza de que essa longa viagem pela Antiguidade Oriental foi bastante elucidativa. Como vimos, desde suas origens, os seres humanos desenvolveram formas de indumentária que seguiam alguns padrões em comum, graças à sua criatividade e capacidade de se adaptarem ao meio ambiente. As necessidades específicas de cada lugar, porém, ajudaram as escolhas e tendências diferentes por parte dos povos, proporcionando estilos e soluções inovadoras e diferentes.
É revelador saber que os seres humanos começaram a pensar em ornamentos antes mesmo de se vestirem; e que se vestiram por necessidade, longe de questões de pudor ou religião. Nada mais equivocado, por exemplo, do que a imagem do ser humano “pré-histórico” usando uma tanga de peles, com o resto do corpo descoberto. Com certeza, agasalhar-se era muito mais importante do que disfarçar partes do corpo, o que gera impressões erradas sobre as vestimentas dos primeiros Sapiens.
Quando analisamos o sarongue, compreendemos também que as primeiras iniciativas em criar modelos básicos de vestimenta seguiram certas tendências, mas evoluíram em sentidos bem diversos. Como o uso de fibras vegetais acompanhou o desenvolvimento da agricultura e da criação, as primeiras civilizações investiram em culturas próprias, como o Egito com o linho; a Suméria com a lã; a Índia com o algodão; a China com a seda.
Vimos também que várias das soluções encontradas para o desenvolvimento das peças e dos adornos se transformaram em indumentárias duradouras. Ainda desfrutamos de um vasto elenco de peças, acessórios e ornamentos desenvolvidos gradualmente ao longo dos milênios – alguns podem ser encontrados em suas civilizações de origem, outros se difundiram pelo mundo, ganhando vários tipos de emprego.
Analisar a história da indumentária, nas suas origens e entre as civilizações do Oriente antigo, é conhecer um pouco mais sobre o próprio início da humanidade. A criação das vestimentas está intimamente conectada com o enfrentamento aos desafios da natureza e o desenvolvimento de tecnologias, sendo um dos elementos crucias para a continuidade de nossa espécie.
Nas mais singelas peças de roupa que vemos atualmente, estão guardados séculos de lutas, experiências e símbolos que fazem parte de uma magnífica herança cultural.
Podcast
Agora com a palavra os professores Rodrigo Rainha e André da Silva Bueno, relembrando alguns tópicos tratados no tema. Vamos ouvir!
CONQUISTAS
Você atingiu os seguintes objetivos:
Reconheceu o surgimento e a evolução do vestuário nas sociedades humanas
Identificou as principais questões que permeiam a formação da indumentária no Crescente Fértil
Descreveu o papel da indumentária nas primeiras civilizações sedentárias da antiguidade no Oriente